”Sephora Kids” e padrões estéticos estão mudando a infância como conhecemos?
Skincare

”Sephora Kids” e padrões estéticos estão mudando a infância como conhecemos?

por Danielle Sanches

Quando minha filha de 7 anos começou uma busca frenética por brilhos labiais de diversos sabores nas farmácias do bairro, pensei que era apenas uma brincadeira entre as amigas da escola. Afinal, não fazia muito sentido colecionar um tubinho de cada sabor – não haveria nem tempo, nem bocas suficientes, para usar tudo aquilo até o vencimento dos produtos. Semanas depois, no entanto, passeando pelo feed do Instagram, encontrei uma publicação que explicava o esforço de marketing da marca dos tais brilhos labiais para atingir justamente esse público: o de meninas que ainda estão na infância ou já entrando na pré-adolescência.

É essa justamente a faixa etária do fenômeno que vem sendo chamado na gringa de “Sephora Kids”: o de meninas influenciadoras, com idades entre 9 e 14 anos, que se dedicam a fazer vídeos no Tik Tok mostrando suas rotinas de skincare, com direito a hidratantes, máscaras e outros produtos faciais indicados para adultos; ou compartilhando dicas de maquiagem com temas tipo “quais bases deixam a pele mais bonita”, por exemplo.

Com milhões de visualizações, várias pré-adolescentes passaram então a buscar as lojas da rede francesa de cosméticos para comprar produtos que aparecem nos vídeos (e que não são feitos para elas, é bom frisar). A polêmica envolveu ainda marcas como a Drunk Elephant, tida como “uma obsessão” entre as meninas dessa idade, de acordo com a revista americana Glamour. Em posicionamento oficial, Tiffany Masterson, fundadora da marca de skincare, defendeu que há produtos para todos os tipos de pele na linha, mas que “ácidos e retinol certamente não são apropriados para pré-adolescentes”. E reforçou que a marca não quer impactar crianças.

Embora seja crescente, a tendência parece ainda estar restrita ao mercado norte-americano – considerado um dos maiores do mundo em cuidados pessoais. No entanto, dados do portal Statista afirmam que, até 2028, a comercialização desses produtos deve ultrapassar a casa dos bilhões em todo o mundo. Ou seja, é esperado que as marcas e redes de lojas de cosméticos e cuidados pessoais acabem traçando estratégias para atingir o público pré-adolescente em algum momento.

“Do ponto de vista das marcas, é o sonho dourado de qualquer empresa ter seu produto inserido ali, na rotina diária do consumidor”, explica Patrícia Diniz, professora do Hub de Moda e Luxo da ESPM e especialista em marketing e gestão. No entanto, ela diz, é preocupante quando grandes grupos e empresas deixam de tomar uma posição mais clara sobre o uso desses produtos em crianças e o que isso significa para a comunidade. Ela enxerga este movimento de skincare infantil como um retrocesso. “Há pouco tempo falamos sobre os prejuízos do etarismo e de como as mulheres podem envelhecer. Agora vemos meninas de 10 anos preocupadas com envelhecimento e skincare. O que isso significa?”, questiona.

Uso pode trazer problemas de saúde
O primeiro e mais óbvio sinal de alerta que essa “moda” trouxe é o mal que o uso de ativos como ácido glicólico, retinol e outros consagrados da indústria cosmética podem trazer para a pele e saúde de crianças e pré-adolescentes. “A pele da criança antes da adolescência, antes de finalizar o processo da puberdade, é mais fina, mais sensível e absorve mais os produtos cosméticos utilizados”, explica Marjorie Uber Iurk, especialista membro do Departamento Científico de Dermatologia da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).

Segundo ela, muitos cosméticos – tanto os tradicionais como os veganos e parte do movimento “clean beauty”– não são testados para uso infantil, ou seja, não há dados suficientes para garantir que são seguros para uso nessa faixa etária. “O risco de efeito colateral é grande, desde alergias até disrupção endócrina, que é a interferência no equilíbrio hormonal dessas meninas”, alerta. Iurk aponta ainda que esse exagero no uso de cosméticos adultos pode reforçar uma distorção de autoimagem, impondo padrões estéticos às meninas de forma muito precoce. “Elas não têm maturidade emocional e psicológica para entender o que é real ou não”, lamenta.

Para a dermatologista Carla Vidal, de São Paulo, meninas na pré-adolescência devem investir apenas na limpeza e proteção solar da pele, sob o risco de desenvolver problemas dermatológicos que não existiriam caso o uso desses cosméticos não fosse feito. “Qualquer produto diferente de sabonete e filtro solar só deve ser usado caso exista alguma necessidade especial e sempre com a recomendação de um médico dermatologista”, afirma ela, que faz um adendo: ativos como vitamina C e outros só entram na rotina de skincare a partir dos 25 anos, se e quando necessário.

Padrões estéticos e infância roubada
O assunto é complexo e envolve outros muitos temas, como pressão estética direcionada especialmente às mulheres e abuso no uso de redes sociais (que, teoricamente, são permitidos para indivíduos a partir dos 13 anos apenas) por crianças. Dados de uma pesquisa recente nos Estados Unidos indicam que crianças entre 8 e 12 anos (os “tweens”) passam, em média, 4 horas e 44 minutos usando telas e acessando redes sociais.

Nesse sentido, a discussão também deve inserir o papel dos pais que, muitas vezes, não sabem com abordar a questão com seus filhos ou, pior, autorizam esse tipo de consumo e comportamento entre eles. “Infelizmente, quando olhamos as redes sociais, nos deparamos com muitas crianças produtoras de conteúdo, com um adulto autorizando essa criança, ganhando dinheiro com isso. É um problema muito maior”, acredita a psicóloga Sue Misse, especializada em adolescência e pré-adolescência. Para ela, essas redes têm, sim, sua parcela de responsabilidade ao permitir que adultos criem contas para veicular e monetizar esse tipo de conteúdo.

“Mas existe também a responsabilidade dos pais de filtrar esse uso, os conteúdos a que os filhos têm acesso, de filtrar o tempo de tela e orientar sobre o quanto aquilo faz bem ou não, falar sobre saúde e, assim, fortalecer a autoestima dessas meninas”, afirma Misse. “Dessa forma, mesmo que elas vejam isso na escola, na casa das amigas, elas terão ferramentas para lidar com essas influências”, diz.

Essa é a postura que a psicóloga Elisangela Ferreira da Silva, de 46 anos, adotou para com a filha de 11 anos. “Não adianta simplesmente proibir, a mãe das amigas deixa. Eu tento conversar, questionar tudo e explicar sobre o problema dos excessos”, conta. “Me acostumei a ser a ‘mãe chata’. Mas é cansativo às vezes”, desabafa.

Mãe de uma menina de 13 anos e de uma mulher de 27, a jornalista Micheline Alves conta que percebe a diferença de publicidade que sua mais nova está exposta em comparação com o que foi a infância da mais velha. “Dar produtos de beleza em aniversário virou um ‘hit’ para elas”, diz. “Elas usam o termo ‘skincare’ como se fosse normal na idade delas pensar nisso. Esse, para mim, foi o ponto de virada. É muito perverso”, lamenta. E, mesmo tendo um canal aberto de diálogo com a menina, Micheline também sente dificuldades em abordar o tema. “Todas as amigas têm seus nécessaires de produtos e é óbvio que ela quer ter também. É uma conversa delicada, não dá para proibir completamente, mas é preciso colocar limite”, acredita.

Misse reconhece que nem tudo são flores e o contexto no qual essas crianças estão inseridas torna tudo mais difícil. “Elas têm amigas falando disso e querem pertencer, fazer parte do grupo, e impedir o acesso a esses produtos pode, sim, criar um sentimento de injustiça, de deslocamento que é um sofrimento para elas”, explica.

Ou seja, simplesmente proibir o uso sem explicações não resolve. “Vale lembrar ainda que brincar com a maquiagem, as roupas e os sapatos da mãe ou outro cuidador primário sempre foi uma forma lúdica de interagir com o mundo adulto”, afirma a psicóloga Barbara dos Santos, da Clínica Holiste, de Salvador. “O problema é que a brincadeira deixou de ser brincadeira e se tornou literal, ou seja, essas crianças estão agindo como ‘mini-adultos’”. Isto é, o que era para ser uma etapa normal do desenvolvimento infantil tem se tornado, na verdade, prejudicial ao incentivar comportamentos adultos para os quais elas simplesmente ainda não estão emocionalmente prontas para lidar, impactando a saúde mental e autoestima delas.

Para Santos, a pressão estética que vemos hoje tão intensamente divulgada nas redes sociais – por meio de uso de filtros, por exemplo — já está chegando nas crianças e influenciando seus comportamentos. “A juventude hoje não é uma fase pela qual se passa, é um valor exaltado, então o envelhecimento precisa ser combatido”, analisa. “É como se a gente dissesse para essas crianças: não é possível simplesmente envelhecer bem, o envelhecimento precisa ser retardado”.

Quando buscar ajuda?
Aqui em casa, demorei a entender que a coleção de brilhos labiais era mais do que uma brincadeira de criança. Quando entendi, tive uma conversa com a minha filha sobre excesso de consumo e como devemos tentar adquirir apenas produtos dos quais precisamos – por mais que a vontade e o apelo sejam imensos.

“Existe um universo de consumo infantil, mas quem faz o consumo, quem paga por ele é o adulto”, lembra Misse. “É importante que ele questione a forma como está consumindo, qual o exemplo que está levando para casa e transmitindo para a criança”, opina.

Como temos conversas sobre consumismo excessivo há muito tempo, não foi difícil que a minha filha compreendesse. Mas sei que essa não é a regra e que muitas crianças vão, sim, ter dificuldade em entender o quanto esse tipo de comportamento é nocivo para a própria saúde (física e mental).

Qual, então, é a medida? Como tudo no maravilhoso mundo da parentalidade, é preciso estar atento aos sinais de cada criança. “Brincar com maquiagem e se divertir de forma lúdica pode ser feito”, afirma Iurk. “No entanto, os pais precisam estar conversando sempre e entendendo as motivações por trás desse uso, se é só uma brincadeira ou se é motivado por uma influencer ou pelos amigos, por exemplo”, diz.

E, se o uso já se tornou diário e excessivo, ou seja, se a criança só vai para a escola maquiada porque se sente bonita apenas desse jeito, faz do ritual de skincare algo diário e que precisa ser feito ou isso cria algum tipo de estresse psicológico, é hora de buscar ajuda especializada o quanto antes para trabalhar a autoestima e não deixar que, lá na frente, isso se torne uma obsessão capaz de desencadear algum transtorno psicológico.

No episódio abaixo do podcast Ciao, Bela, tem mais sobre o assunto:

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